Filas e mais filas. Risco de contágio e agressões. Esquema especial de atendimento nos bancos em tempos de pandemia. Um cenário de filme pós-apocalíptico.
O governo federal vem encontrando diversas dificuldades operacionais para o processamento e pagamento do auxílio emergencial aos trabalhadores que necessitam do benefício. Muitos dos obstáculos não são reparados pelo Poder Executivo na figura do Ministério da Cidadania, compelindo assim o cidadão a submeter-se a condições humilhantes em filas gigantescas em frente aos bancos e a ajuizar demandas no Poder Judiciário, judicializando a apreciação dos requisitos de elegibilidade.
O auxílio consiste em medida excepcional de proteção social, adotada durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus (Covid-19).
As autoridades públicas implantaram diversas medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do surto. Dentre elas, destaca-se o auxílio emergencial, instituído pela Lei n.º 13.982/2020.
A regulamentação do auxílio emergencial é dada pelo Decreto n.º 10.316, de 7 de abril de 2020, que atribui sua execução ao Ministério da Cidadania e ao Ministério da Economia, competindo-lhes, respectivamente, compartilhar a base de dados do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal e das famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família e autorizar a empresa pública federal de processamento de dados (Dataprev) a utilizar as bases de dados necessárias para a verificação dos critérios de elegibilidade dos beneficiários.
Segundo dados do Ministério da Cidadania, a expectativa inicial do governo era de que 54 (cinquenta e quatro) milhões de brasileiros fossem beneficiados com o auxílio emergencial. O quantitativo de pessoas apresentou o desafio inicial de estabelecer segurança e agilidade na obtenção de dados para verificação de preenchimento dos critérios de elegibilidade. Após reavaliação do governo, a previsão saltou para 75 (setenta e cinco) milhões de brasileiros.
Por meio das redes sociais, a população apontou diversas reclamações. As principais queixas foram em relação às falhas nos aplicativos, à demora na análise, à falta de atualizações e informações, longas filas, falta de explicação e orientação, dentre outras.
De fato, é inegável que o principal programa de suporte econômico para a população durante a pandemia do novo coronavírus enfrenta problemas diversos, deixando vários trabalhadores informais e autônomos sem a proteção social prevista na legislação.
A metodologia de obtenção de dados e pagamentos do benefício se dá em dois grupos: aquele de cidadãos inscritos no CadÚnico, beneficiários ou não do Programa Bolsa Família, e o grupo de não inscritos no CadÚnico, consoante § 4º do art. 2º da Lei n.º 13.982/2020.
Para os primeiros, não é necessário fazer requerimento, as pessoas são identificadas e têm o auxílio concedido automaticamente, desde que atendam às regras do Auxílio Emergencial e respeitando-se o limite de duas quotas por família.
De outro lado, para os cidadãos do segundo grupo, faz-se necessário o requerimento e preenchimento de autodeclaração mediante plataforma digital, seja pelo site ou pelo aplicativo da Caixa Econômica Federal. O problema ocorre no momento em que há divergências nas informações declaradas.
O cadastro único é um rico e complexo sistema com dados importantes para caracterização das famílias de baixa renda, que demonstra a realidade socioeconômica. Nele são registradas informações, como: características da residência, identificação dos membros da família, escolaridade, trabalho, renda, etc.
Trata-se, portanto, de ferramenta de inclusão de famílias de baixa renda em programas federais, sendo obrigatoriamente usada para a concessão de benefícios do Programa Bolsa Família, Tarifa Social de Energia Elétrica, Programa Minha Casa Minha Vida, Bolsa Verde, além de programas estaduais e municipais.
Não seria admissível que o cidadão registrasse determinada conjuntura socioeconômica para fins de inclusão em programas assistenciais e depois alegasse que houve desatualização do CadÚnico, por mera conveniência.
Na hipótese em que o trabalhador, não inscrito no CadÚnico, informa determinada composição familiar, os dados por ele fornecidos são submetidos a processamento complexo e cruzamento de informações constantes em diversos bancos de dados governamentais.
Na eventual circunstância em que se constatar que um dos componentes do grupo familiar informado pelo cidadão consta no CadÚnico, em conjuntura completamente divergente daquela declarada, há que se estabelecer previamente, para fins de segurança jurídica, um grau de confiabilidade em apenas uma das informações prestadas.
Conclui-se que a lei atribuiu maior grau de confiança às informações constantes do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal.
Vê-se que a lei categorizou os diferentes instrumentos de coleta de dados, priorizando as informações obtidas no CadÚnico. Assim, em caso de divergência, estas foram presumidamente consideradas como verdadeiras.
Não haveria como o Poder Público admitir uma realidade, refletida a partir do banco de dados do CadÚnico para fins de concessão de diversos benefícios assistenciais e, no momento de se aferir os critérios de elegibilidade do auxílio emergencial, simplesmente ignorá-los.
Assim, nas situações em que o trabalhador, na plataforma digital, por autodeclaração, informa que integra o mesmo grupo familiar de indivíduo que já recebeu o benefício de auxílio emergencial de maneira automática, em conjuntura diversa daquela constante do CadÚnico, é de se concluir, por decorrência lógica, pelo seu indeferimento.
Entender de forma diversa daria margem a inúmeras fraudes, como a hipótese em que um indivíduo, que faça parte de grupo familiar beneficiário do Programa Bolsa Família, com quatro integrantes, postule auxílio emergencial, declarando, por exemplo, que reside sozinho. As informações constantes do CadÚnico evitam tal intento fraudulento.
Contudo, é importante salientar que a base de dados empregada para avaliação automática, com relação aos cidadãos do primeiro grupo acima indicado, acerca do preenchimento dos requisitos de elegibilidade do Auxílio Emergencial, foi aquela do dia 2 de abril de 2020, data da edição do Decreto n.º 10.316/2020.
Não se pode admitir que a composição das famílias brasileiras permanecesse estática. Logo, há que se estabelecerem mecanismos seguros de atualização das informações, sob pena de exclusão de diversos trabalhadores do referido programa de proteção social.
É aí que se destaca o papel do Poder Judiciário na apreciação aprofundada da conjuntura socioeconômica das famílias de trabalhadores que judicializaram a temática. Devem ser definidos instrumentos de aferição da efetiva composição do grupo familiar e de sua renda de maneira mais confiável e precisa, a partir de instrução probatória.
Considerando ainda a situação de vulnerabilidade social de grande parte da população, que não pode obter recursos por meio do trabalho, haja vista as medidas de isolamento social, que evidenciam perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, faz-se necessária apreciação judicial dos requisitos para concessão de tutela de urgência, na forma do art. 300 do Código de Processo Civil.
Para tanto, há um verdadeiro juízo de probabilidade em que a análise judicial se dá por meio da plausibilidade ou verossimilhança do direito autoral. Desta forma, cabe ao jurisdicionado apresentar prova documental robusta acerca da desatualização do CadÚnico e do preenchimento dos requisitos de elegibilidade do Auxílio Emergencial.
De fato, são inúmeros os desafios das instituições públicas com o escopo de garantir efetiva proteção social, no âmbito da Seguridade Social, diante do enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus.
O que não se pode permitir é o engessamento da base de dados, de forma a implicar em injustiças, decorrentes de escolhas políticas por metodologias de obtenção de dados de caráter meramente burocrático, as quais impedem mecanismos de revisão dos atos administrativos, seja pela possibilidade de apresentação de contestação ou de atualização cadastral. Do contrário, a população ficará refém de sistemas automatizados.
Comentário