Os efeitos da pandemia de coronavírus parecem se estender muito além de nossos corpos. Ameaçam, agora, de forma alarmante, nossa saúde mental.
Tanto é assim que, no mês de maio passado, a Organização das Nações Unidas (ONU), emitiu relatório tratando de políticas públicas sobre saúde mental em que destaca a importância deste tema nos tempos atuais, apontando o caráter essencial que estes serviços têm e indicando que devem compor parte de uma cesta de iniciativas de combate ao coronavírus e seus efeitos sobre a população.

António Guterres – Secretário Geral da ONU
António Guterres, secretário-geral da ONU, produziu, inclusive, um vídeo (https://youtu.be/pU2BJaTyaTI) em que reforça estes fatos, sinalizando para a necessidade de efetiva expansão dos serviços em saúde mental. Ali, o Sr. Guterres diz textualmente que “… problemas de saúde mental, incluindo depressão e ansiedade, são algumas das maiores causas de miséria no nosso mundo”.
E, na mesma toada, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, declarou que: “O impacto da pandemia na saúde mental das pessoas já é extremamente preocupante.”, complementando que “…o isolamento social, o medo de contágio e a perda de membros da família são agravados pelo sofrimento causado pela perda de renda e, muitas vezes, de emprego.”
O fato é que tanto as perdas econômicas quanto as mudanças produzidas nos hábitos e costumes de nossa sociedade impactam não apenas nosso poder aquisitivo ou nossa rotina e cotidiano, mas – e, talvez, principalmente – atingem perversamente nossa dinâmica psíquica e nossos estados humorais, nos predispondo, muito mais do que poderíamos imaginar, ao adoecimento psíquico.
Na verdade, qualquer um que tivesse se interessado pelo tema em tempos anteriores ao desta pandemia, após breve pesquisa, saberia que a questão da saúde mental é das mais relevantes já há muito tempo, produzindo números e estatísticas que fariam sombra a estes, da COVID. E ainda assim, paradoxalmente, é uma das áreas, em saúde, menos discutidas e mais negligenciados, e sobre a qual, inclusive, menos informação segura e de qualidade se dispõe.
Há tempos vivemos este adoecimento, esta outra pandemia, não menos silenciosa e oculta que o coronavírus, mas não por isso, menos letal.
Os registros estatísticos das últimas décadas testemunharam uma verdadeira explosão dos quadros de depressão, insônia, ansiedade e pânico – só para citar as mais prevalentes. E isso sem mencionar um outro problema, não menos grave e não menos silente, que vem a reboque, e que diz respeito a um outro verdadeiro surto, observado desde as décadas finais do século passado: o da medicalização, que vem se fazendo crescente e excessiva.
Vamos aos números.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que aproximadamente 350 milhões de pessoas ao redor do mundo sofram de depressão. A estatística para a população americana, fornecida pelos Centros de Controle de Doenças3 (Centers for Disease Control – CDC), é de que algo em torno de 11% dos americanos padeçam. Apenas a título de exemplo, no ano de 2005, das mais de 2.4 bilhões de drogas prescritas em consultórios médicos e hospitais dos Estados Unidos, 118 milhões foram exclusivamente de antidepressivos! E mais: o uso destes medicamentos praticamente triplicou do final da década de 1980 até o início dos anos 2000!
No Brasil, a estimativa é de que cerca de 38 milhões de pessoas sofram deste mal. De acordo com o Laboratório de Ansiedade da USP, de 15 a 20% da população mundial sofrerá de depressão em algum momento da vida, sendo que 50% desses pacientes serão vítimas da forma mais grave da doença. Para piorar, de 30% a 40% destes pacientes não respondem aos tratamentos medicamentosos disponíveis atualmente.
Ainda em 1990, um levantamento4 intitulado Global Burden of Disease, algo como “O Fardo Global das Doenças”, demonstrou que as desordens mentais e neurológicas eram responsáveis por comprometer mais de um quarto dos anos produtivos ao redor do mundo, medido em anos de convivência com o fardo de uma dada condição – do inglês, years lived with disability, ou YLD. Ainda segundo este estudo, das dez principais doenças responsáveis por causar algum tipo de impedimento na capacidade produtiva de um indivíduo, cinco estavam incluídas na categoria das desordens mentais, sendo que a depressão liderava esta lista como a mais debilitante, de acordo com o critério YLD.
Uma versão mais recente deste levantamento5, publicado em 2013 pelo respeitado periódico científico Lancet, indicou que, apenas para o ano de 2010, os achados do estudo inicial, de 1990, permaneciam válidos vinte anos depois, e que o potencial debilitante destas condições, especialmente depressão e ansiedade, vem acometendo populações cada vez mais jovens, tendo seu número se elevado abruptamente nos últimos anos para as faixas de infância (1-10 anos), alcançando seu pico na adolescência e jovens adultos (15-29 anos).
O Gráfico 1-1 ilustra estes fatos, ajustados por idade e por condição debilitante (Disability-adjusted life years – DALYs), somente em 2010.

Disability-adjusted life years – DALYs
Gráfico 1-1: Anos de vida ajustados por idade e condição debilitante (Disability-adjusted life years – DALYs), somente em 2010 no mundo (Fonte: Whiteford, 2013).
A Tabela 1-1, por sua vez, ilustra a magnitude do fardo social imposto pelas doenças mentais em termos mundiais. Ainda que ocupem apenas o 5º. lugar dentre as categorias debilitantes (7.4%), medidas em anos de vida ajustados por debilidade (DALYs), proporcionalmente, em termos de anos de vida produtiva perdidos (YLDs), as desordens mentais e por uso de substâncias ilícitas foram responsáveis pelo maior percentual debilitante dentre todas as desordens consideradas (22.9%).
Para que se tenha uma ideia do que representam estes números, e lembrando que estamos aqui falando apenas do ano de 2010, somente as desordens mentais e aquelas ligadas ao uso de substâncias ilícitas, foram as principais responsáveis por nada menos que impressionantes 175.3 milhões de anos de vida produtivos perdidos ao redor do mundo em função da condição debilitante que estas condições impõem! Depressão e ansiedade continuam sendo as desordens mentais que mais contribuem para estas tristes estatísticas.
Com estatísticas como estas, você se pergunta como é possível que tais números permaneçam à margem de uma discussão mais aprofundada, em nossa sociedade. Saúde mental é, de longe, a área em saúde sobre a qual menos informação de qualidade se tem, mas uma das que maior custo produz às economias do mundo.