
Dr. Ronaldo José de Lira – Procurador do MPT
Diante de um quadro de enorme preocupação com a saúde da população devido à epidemia do novo coronavírus, e consequentemente dos trabalhadores, a Revista Preven foi buscar conhecer o papel de atuação do Ministério Público do Trabalho (MPT) em defesa do trabalhador e as ações de proteção dos direitos e garantias trabalhistas.
Com o objetivo de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais disponíveis no âmbito das relações de trabalho, contribuindo para a proteção dos interesses difusos, coletivos e individuais indispensáveis para a concretização dos ideais democráticos e da cidadania, o MPT tem sido um guardião das garantias e defesa dos direitos dos trabalhadores e, em um momento como o que estamos vivendo, os procuradores do MPT buscam proteger os direitos fundamentais e sociais do cidadão diante de ilegalidades praticadas na seara trabalhista.
A Revista Preven convidou o Dr. Ronaldo Lira, procurador do Ministério Público do Trabalho, atualmente lotado em Campinas, para uma entrevista em que discorre sobre o desempenho do MPT no combate ao COVID-19 no país e os diversos aspectos que contornam o assunto.
Acompanhe a entrevista a seguir.
Para começarmos a nossa entrevista, gostaria que o senhor falasse um pouco de sua trajetória à frente do Ministério Público do Trabalho nesses 22 anos de carreira.
Tomei posse em 1998 e desde então estou lotado em Campinas. A 15ª Região abrange 599 municípios do interior e litoral norte de São Paulo e, dentro do cenário nacional, possui um papel expressivo no agronegócio, na indústria, no comércio e no setor de serviços. Essa pulverização de atividades nos apresentou grandes desafios ante a complexidade dos conflitos que nos deparamos. Isso gerou muitos casos e ações emblemáticas, que provocaram mudanças e uma verdadeira transformação social em muitos setores e regiões. Além de membro, fui coordenador da Codin (Coordenadoria de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos), o que para mim foi uma grande experiência profissional, já que vivenciei o antes e o depois. O antigo boia fria desapareceu, agora é trabalhador rural, que tem transporte adequado, banheiro, EPI, marmita térmica e local para refeições.
Isso é a aplicação do princípio da dignidade humana. Infelizmente foi necessário a intervenção ministerial e da fiscalização trabalhista para sanar muitas irregularidades trabalhistas e fraudes, bem como promover melhores condições de trabalho. A grandeza do Estado de SP nos permitiu conhecer e atuar em culturas preponderantes do agronegócio paulista em conjunto com o grupo móvel de trabalho rural (do antigo MTE), especialmente na colheita da laranja e do corte de cana de açúcar, mas também em outras culturas, dentre elas, do tomate (Alto da Ribeira) e região de Mogi Guaçu, da banana (Vale do Ribeira), do café (região de São João da Boa Vista) etc.
Na área urbana, atuamos na administração pública, bem como em diversos setores do comércio, da indústria e de serviços, shopping centers, varejo, químico, metalúrgico, plástico, construção civil, alimentos, álcool e açúcar, amianto, call center, hospitalar, tanto nas áreas de saúde e segurança como em fraudes, coação, assédio moral, trabalho infantil, liberdade sindical, discriminação, inclusão de PcD (Pessoas com Deficiência) e de jovens aprendizes, terceirização ilícita etc.
Além disso, também ocupei os cargos de Vice Coordenador Nacional da Codemat (Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho) e da Coordinfância (Coordenadoria Nacional de Defesa da Criança e do Adolescente). Na Codemat participei de várias ações e grupos de trabalho no MPT, no MTE (CTPP, CNTT da NR12, grupos de trabalho etc), no TST (Comitê Trabalho Seguro) e com alguns TRTs, em especial da 15ª Região em que participei de inúmeros eventos sobre meio ambiente de trabalho. Na Coordinfância não foi diferente, muitas ações com diversos parceiros institucionais, além dos acima mencionados, Fnpeti, OIT e Unicef.
Atualmente, desempenho minhas tarefas junto à coordenadoria de segundo grau, no TRT de Campinas.
Qual o papel do MPT no combate ao COVID-19 no país? Há alguma diferença regional da atuação do MPT frente à pandemia?
O MPT desenvolveu um sistema de gestão e planejamento estratégico para enfrentar a crise. Assim, todas as regionais criaram grupos de trabalho com o objetivo de desenvolver diversas ações. Foram editadas notas técnicas* e recomendações com o posicionamento institucional, como as diretrizes para a proteção das empregadas domésticas, defesa dos estagiários e aprendizes, negociação coletiva, prevenção da violência e assédio nas relações de trabalho, aplicação das novas regras trabalhistas, orientações para o transporte de mercadorias, medidas de segurança no setor portuário, proteção de trabalhadoras e trabalhadores com deficiência, enfim, um arcabouço para dirimir muitas situações e conflitos.
Além disso, foram instaurados 3 mil inquéritos civis, expedidas recomendações, ajuizadas ações, firmados TACS, acordos, mediações, audiências de greve e dissídios coletivos, debates virtuais, atuando no âmbito administrativo e judicial. Vale destacar que o êxito das ações coletivas resultou na destinação de 230 milhões de reais para hospitais, associações de saúde, universidades, entre outros, para a execução de ações de combate ao coronavírus.
Por fim, no âmbito regional, destaco as ações ambientais para os trabalhadores de plataformas digitais na 2ª Região, e outras específicas para a defesa dos profissionais com atuação em presídios, frigoríficos, call center etc.
* https://mpt.mp.br/pgt/noticias/coronavirus-veja-aqui-as-notas-tecnicas-do-mpt
Como tem sido feita a fiscalização por parte do MPT dos setores que estão liberados para trabalhar nesse período de distanciamento social? Existe algum protocolo de proteção aos trabalhadores, específico desses setores? Se existe, é um único protocolo ou há diferenças por setor?
O MPT não atua como órgão de fiscalização, por isso, desenvolve ações em parceria com as vigilâncias sanitárias, Cerests, sindicatos e Gerências Regionais do Trabalho. Por outro lado, nas investigações, as provas podem ser produzidas através da apresentação de documentos, realização de perícias, inspeção virtual e oitiva de partes e de testemunhas, sempre no intuito de aclarar os fatos e deliberar acerca da necessidade de alguma providência administrativa ou judicial.
O protocolo geral de atuação do MPT é a própria Constituição Federal e legislação esparsa, como a CLT, ECA e NRs; no entanto, durante a pandemia, diante do estado de calamidade e seus reflexos, foram criados grupos de trabalho para analisar e enfrentar os novos desafios trabalhistas, econômicos e sociais. Com efeito, as orientações expedidas pelo órgão, em setores específicos, proporciona o exercício de uma atuação uniformizada.
Qual é a maior preocupação do MPT quanto ao cumprimento das normas pelas autoridades locais, assim como por empresários e comerciantes no distanciamento social?
Alguns municípios estão flexibilizando a quarentena, outros não estão promovendo a fiscalização das empresas que estão descumprindo a ordem municipal ou estadual. Sabemos das questões políticas e econômicas que envolvem o isolamento e o lockdown, porém, tivemos experiências em outros países que nos ensinaram que o preço a ser pago é o colapso nas UTIs e a perda de vidas.
A campanha negacionista “Milão não para” deixou claro que não basta fazer um movimento positivo para ter um bom resultado contra o vírus, é preciso ter ações técnicas de segurança para reverter a curva ascendente. O nosso número de mortos já é mais que suficiente para entender que não temos outra saída, devemos seguir as orientações da OMS e promover o isolamento e distanciamento social, limitando as atividades essenciais ao que realmente é necessário para a nossa sobrevivência. É um momento único no Brasil, portanto, precisamos conter a ansiedade e os impulsos e deixar a ciência agir, não vejo outro caminho.
Sabemos que os profissionais de saúde que estão no enfrentamento ao combate da Covid-19 estão sendo contaminados em números superiores ao que vemos em outros países; a que o senhor atribui essa situação?
Há muitos anos, o Sistema Único de Saúde sofre com a falta de ações necessárias para suportar a demanda. Vale lembrar, que durante os jogos da copa do mundo, grande parte da população reclamou que os bilhões destinados para a construção dos estádios de futebol poderiam ser utilizados na construção de hospitais e escolas. Hoje, alguns desses estádios estão sendo transformados em hospitais de campanha e outros continuam ociosos. Nada contra o futebol, mas, foi preciso a pandemia e o decreto de calamidade para surgirem recursos para a saúde. Mesmo assim, muitas denúncias de compras milionárias feitas a toque de caixa e sem licitação: superfaturamento, desvios e equipamentos que não funcionam.
Vejam que o problema da saúde não é apenas financeiro, precisamos de gestão eficiente para que o sistema funcione bem. E com uma gestão precária, como fica a gestão da segurança em época de pandemia? Importante sublinhar um histórico antigo de reclamações dos trabalhadores da saúde pública e privada: longas jornadas e baixos salários, subdimensionamento de profissionais por leito, falta de treinamentos, assédio moral e muita pressão.
Nesse momento, tivemos o agravamento desse quadro por outros fatores, pois o número de profissionais foi reduzido com a recusa de plantões por falta de condições de trabalho, pedidos de demissão e aposentadoria. Não bastasse isso, outros profissionais foram realocados ou afastados por integrarem o grupo de risco, o que gerou um quadro mais deficitário. Por fim, outra questão preocupante: muitos profissionais do grupo de risco não foram afastados, muitas denúncias de falta de EPIs adequados e a não realização de testes do covid-19. Isso ainda nos remete às questões de saúde mental: como deve ser voltar para casa e ser hostilizado nas ruas e no transporte público? E o medo de contaminar a própria família?
Daí a questão central, momentos de crise requerem um time bem orquestrado, aparelhado, capacitado, com boas condições físicas e mentais, para que possam reagir com ações céleres e resolutivas, sob pena de ver acumular grandes perdas, aqui exemplificadas com o absenteísmo, com o adoecimento e por fim, com as centenas de mortes que poderiam e deveriam ser evitadas.
Qual o entendimento do MPT sobre a conscientização dos profissionais de saúde sobre riscos químicos, físicos e biológicos dentro de unidades de saúde? Nessa avaliação, se poderia considerar que esses profissionais têm pouco conhecimento ou treinamento relativos à Norma Regulamentadora que trata do assunto, a (NR32)?
O nível de conhecimento e treinamento dos trabalhadores varia de acordo com a ordem de prioridades da cada instituição. No entanto, não é raro encontrar trabalhadores que não foram capacitados aos riscos da atividade ou ainda, que não foram treinados ao longo do tempo, gerando um ambiente passível de alto risco de acidentes e adoecimento. A NR 32 dispõe que os treinamentos devem fazer parte de um programa de educação continuada, com diretrizes que nem sempre são observadas, p.ex., medidas de prevenção e de como agir em caso de ocorrência com os incidentes, que na maioria das vezes são ignorados no ambiente de trabalho, mas que deveriam ser objeto de análise e considerados como de risco, já que apontam deficiência na segurança do trabalho.
O plenário do STF suspendeu dois trechos da MP 927/20, que autorizam empregadores a adotarem medidas extraordinárias referentes ao contrato de trabalho durante a pandemia do coronavírus; qual tem sido a posição do MPT sobre essa pauta?
As regras do Direito do Trabalho são peculiares e protetivas porque tratam de relação jurídica diversa de uma relação civil, pois o contrato de trabalho é um contrato de adesão, restando pouco espaço para o trabalhador exercer a sua vontade. Além disso, o ente sindical é o representante legal dos trabalhadores, portanto, não pode ser suprimido em uma negociação coletiva, sob pena de enfraquecimento de todo o modelo.
No mesmo sentido, as regras de saúde e segurança não podem ser flexibilizadas em detrimento do direito à vida e do direito à saúde. Enfim, apesar do momento de calamidade que estamos vivendo, devemos considerar as situações atípicas, mas sem olvidar os contornos do texto constitucional. Nesse sentido, o MPT publicou uma nota técnica* sobre a Medida Provisória 927/20, para alertar sobre as violações constitucionais que a referida medida trouxe ao ordenamento jurídico.
Por maioria, os ministros mantiveram a validade dos principais pontos da MP 927, mas suspenderam o art. 29 – que estabelece que o coronavírus não é doença ocupacional – e o art. 31 – que flexibiliza a atuação dos auditores fiscais do trabalho.
A negativa de doença ocupacional por Medida Provisória faz parte do negacionismo da própria doença, e isso não pode subsistir no ordenamento jurídico, pois, em alguns casos, seria o mesmo que negar a silicose como doença ocupacional de quem é exposto à sílica ou o mesotelioma de quem trabalha direto com o amianto.
A jurisprudência trabalhista tem aplicado a teoria da responsabilidade civil objetiva em inúmeros casos, portanto, imaginem a situação de se impor a um profissional da saúde o dever de produzir prova de que o vírus foi contraído em razão do trabalho.
Da mesma forma, limitar a fiscalização trabalhista é o mesmo que transformar uma obrigação legal, na maioria das vezes embasada em normas de origem tripartite, em uma carta de intenções, sem qualquer garantia para os trabalhadores expostos, para seus familiares e também para a sociedade, que em última análise é quem arca com os custos do sistema único de saúde e previdenciário.
O MPT é favorável à flexibilização das jornadas de trabalho de funcionários expostos a um risco muito alto, alto ou médio de infecção? Se sim, como funcionaria essa flexibilização?
Jornada de trabalho é um tema debatido desde a revolução industrial. E até nos dias atuais é pauta de negociação coletiva da classe trabalhadora que luta pela sua redução. Agora, imaginem flexibilizar jornada de 12 horas em ambiente hospitalar, pois, na maioria das vezes, as pessoas deixam seus plantões exauridas. Não vejo outro caminho que não seja a aplicação do entendimento firmado na nota técnica do MPT, que enfatiza que a jornada de trabalho encontra limites na Constituição Federal e que esse mandamento deve ser respeitado, sob pena de prejuízo à saúde dos trabalhadores e qualidade do serviço.
O senhor poderia explicar o que significa a comprovação do nexo causal para efeito de reconhecimento de doença do trabalho? Quais as implicações previdenciárias pertinentes ao trabalhador e ao empregador quanto a essa medida?
A Lei 8231/91 prevê que a doença do trabalho é aquela adquirida ou desencadeada em função do trabalho. Isso normalmente é objeto de prova pericial. No entanto, muitas vezes o Judiciário, considerando o risco da atividade, reconhece a responsabilidade objetiva e dispensa a produção de provas do nexo causal. As implicações são as seguintes: o trabalhador tem direito ao afastamento remunerado pelo período da licença saúde e, caso permaneça afastado por período superior a 15 dias, gozará de estabilidade no emprego pelo prazo de um ano.
Há muitas denúncias de trabalhadores que têm sido obrigados a cumprir jornadas de trabalho extensas e exaustivas, se expondo a riscos enormes de contaminação; como o MPT tem agido diante destas denúncias?
Instaurando inquérito, promovendo investigações e, se necessário, convocando os denunciados para a devida correção, ou ainda, para a assinatura de termo de compromisso. Em alguns casos pode ocorrer o ajuizamento de ação civil pública buscando o provimento jurisdicional, inclusive com a condenação dos danos morais coletivos.
Por fim, qual é a sua opinião sobre os impactos que teremos no mundo do trabalho em razão das mudanças decorrentes da Covid-19?
Tudo indica que serão muitos. Inicialmente, a crise econômica promoverá uma considerável redução de postos de trabalho, desaguando no desemprego e da informalidade. O ambiente virtual ganhará mais espaço em nossas vidas. E não apenas o conhecido home office, mas as reuniões, os treinamentos, as conhecidas lives e webinar, o aumento do uso das plataformas digitais com os novos serviços à domicílio e delivery.
Certamente, isso terá impactos positivos e negativos que precisam ser analisados e até mesmo legislados ou convencionados. Algumas empresas, em especial com relação aos trabalhadores mais qualificados, poderão reduzir o tamanho de seus prédios e consequentemente as suas despesas, mas terão que reinventar a forma de organizar do trabalho. Por outro lado, pouco se falou sobre os reflexos nas relações humanas.
Isso será positivo para a motivação, ascensão profissional e até mesmo socialização? Perderemos o café e o almoço com os amigos? No mesmo passo que isso terá repercussão para as relações familiares, como será o novo ambiente de trabalho e o que isso implicará no contrato de trabalho? São questões que vamos ter que enfrentar sob vários aspectos.
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