Há cem dias eu e o mundo fazíamos planos do que fazer nos próximos dias e semanas. Programávamos trabalho, passeios e muitos outros eventos sociais e profissionais. Programamos quando iríamos nos reunir com familiares, amigos, como seriam as reuniões, quando teríamos feriados prolongados  e finalmente chegariam as férias e  com elas, o nosso tempo de descanso.

Até que há cem dias o mundo parou e não me avisou com antecedência. Da noite para o dia me vi obrigada a baixar as portas do meu comércio, da minha casa, das minhas relações, da minha vida. E o pior foi pensar que poderia não vê-los mais. De um dia para o outro, o que eu achava que estava sob controle, escorria pelos meus dedos e me vi, assim como milhares de pessoas, com medo do que poderia vir a ser.

O limite era o portão, vizinhos se transformaram em algo invisível, pessoas temendo outras pessoas e o julgamento porque um usava máscara e outro não…

Notícias, fake news, alarmes, números aumentando, pessoas retornando ao mundo espiritual sem poder ao menos ter a dignidade de se despedir dos familiares ou amigos. O luto não foi falado, o choro foi silencioso, o corpo não foi velado e a dor não pôde ser expressa na intensidade, pelo medo de estar na rua, do contágio, do outro e da morte.

Percebi nesses 100 dias que brincar com o jargão “Nem aqui, nem na China”, já não tinha a menor graça, pelo contrário,  o jargão desses dias era melhor que fosse “tanto aqui, quanto na China”. Percebi que não existe o lá longe, já que o que acontece do outro lado do oceano afeta a mim e a todos daqui, ou seja, não existe mais eles, estivemos  o tempo todo falando do que nos afeta aqui, afeta todos ao redor do mundo; independente de onde estejam, nos percebemos interconectados.

O que pode ser feito? Como mudar a realidade do mundo? Que controle temos sobre tudo isso, mesmo sendo afetados? Nenhum controle.

Vivemos 100 dias de medo, isolamento, ansiedade, angústias, tristezas, descontroles e diante das incertezas, eis que surge em mim um novo movimento – olhar para o que realmente me cabe e pode ser transformado nesse momento: eu mesma.

Ao me dar conta de que nada pode ser modificado fora, voltei a olhar para dentro e o que era necessário como programação anual, passou a ser intenção diária, cuidar de mim e me descobrir um pouco mais a cada olhar. Autodescobrimento virou o tema da noite e do dia. Ampliaram-se as percepções de quem eu sou, do que eu quero, de quanto é bom estar com o mundo e do quanto é infinitamente maravilhoso estar comigo.

Passaram-se 100 dias e foi preciso muita fé. Acreditar que existe “algo maior” do que eu orquestrando as leis no mundo trouxe paz. Confiar que não existe o acaso, me trouxe esperança. Acreditar que se fizesse minha parte e mesmo assim algo acontecesse aos meus, isso também estaria seguindo um planejamento maior, isso me trouxe certeza. Acreditando, apeguei-me a essa força que me impulsiona até hoje – “Ama a teu próximo assim como a ti mesmo, já que o próximo está dentro de ti”. 

Passaram-se 100 dias. Vi muitas pessoas em surto, depressivas, apavoradas, mas também vi muita alegria em rostos que já não tinham mais motivos para tal e acreditavam que viver não fazia mais parte de sua realidade.

Vi crianças nascendo somente próximas a quem realmente importa – pai e mãe.

Vi pessoas descobrindo que o que importa nesse momento é o “estar” consigo, mas também estar com o outro.

Vi pessoas que, assim como eu, sentiram falta de um abraço, de um beijo, de um carinho e saindo de seus casulos, olharam o outro há anos em contendas com o irmão, perdendo o medo de se exporem, afinal de contas podiam morrer a qualquer momento e abrirem o coração, sentirem que a proximidade fazia falta.

Vi laços rompidos serem refeitos na promessa de passados os tempos – “vamos nos rever”.

Cem dias se passaram. O homem saiu de cena e o planeta Terra teve tempo de se refazer. Os dias estão mais brilhantes, os entardeceres radiantes e as noites muito mais profundas, com estrelas onde não eram mais vistas, com a lua podendo demarcar ciclos tranquilamente.

E agora 100 dias depois. Novo começo? Mas o que é o novo já que o mundo parou e se reinventou?

As pessoas descobriram que a partir do querer olhar para si, tinham a internet como aliada, que as reaproximava do outro. Perceberam que estavam todos distantes e juntos. E nesse novo encontro distante-perto, se descobriu o amor ao outro, aprofundamos em nossa fé, e muitos foram tomados por uma profunda alegria, pelo simples estar com os seus, os meus e os nossos, mesmo que virtualmente.

E a distância? Que distância? Ficamos próximos, só esperando pelo abraço, pelo beijo, mas a dor diminuiu, o peso diminuiu, aumentou o amor, aumentou o desejo de viver e de ser melhor para si e para o mundo, diminuiu assim a distância entre eu e o outro.

Passaram-se cem dias e o que serão dos próximos cem?

Não tenho a menor noção, e você? O que você controlará nos próximos cem dias?

Só tenho uma certeza: não estamos no controle de nada além de nós mesmos e diante disso só nos  resta Confiar, nos Entregar e Viver. Um dia de cada vez. Só por hoje, ser feliz com o que se tem, com o que se é e agradecer. A gratidão como prima-irmã do amor potencializa tudo. Sou sobrevivente desses cem dias e honestamente, para os próximos cem, Eu escolho agradecer, seguir, me entregar e confiar. E você, o que escolhe?