Uma das múltiplas nuance da pandemia é a exposição nua e crua da desigualdade social planetária. E um dos capítulos mais dramáticos dessa realidade está em curso na história da pandemia. Trata-se da pesquisa, desenvolvimento e disponibilização universal de uma vacina capaz de imunizar a humanidade em face da Covid-19.

O noticiário sobre o tema dá conta de que os Estados Unidos, ao custo de dois bilhões de dólares, adquiriram todas as doses de potencial vacina que vem sendo desenvolvida por gigantes do mercado farmacêutico. Nesse cenário econômico, social e sanitário, que põe em xeque a própria noção de humanidade, faz-se imperativa uma reflexão ética sobre a imunização da espécie homo sapiens em face do vírus Sars-CoV-2.

Com efeito, as grandes organizações do setor farmacêutico que alocam seu capital em pesquisa, desenvolvimento e disponibilização de uma vacina eficiente para Covid-19 elegem os países onde a pandemia se mostra mais dramática como verdadeiros laboratórios de testes para validação da vacina.

Essas “nações laboratório” ou “países cobaias”, dadas a absoluta ausência de políticas públicas eficientes para controlar a transmissão da doença e a subserviência de seus governantes aos interesses econômicos globalizados, recebem de forma carnavalesca todo o tipo de substância farmacológica ou experimento bioquímico, independente da publicidade das garantias sobre o resultado dos testes e eficiência da medicação, se é que essas garantias efetivamente existem.

O que se percebe, de par com ausência de publicidade de supostas garantias da pesquisa, é que, tomando o exemplo dos Estados Unidos acima oferecido, o capital investido pelo governo americano nas grandes empresas farmacêuticas que pesquisam a vacina não é distribuído na “nação laboratório” ou “país cobaia” como contraprestação pelo “uso das instalações ou insumos laboratoriais”. Os custos das pesquisas, por outras palavras, não precisam considerar as “despesas laboratoriais”.

Também fica evidente, à luz do exemplo em discurso, que, tão logo se atinja a certeza científica de uma vacina segura e eficiente, nenhuma dose da produção em escala industrial será distribuída para a “nação laboratório” ou “país cobaia”. A produção, como visto, será direcionada para imunização da população do governo que financiou as gigantes farmacêuticas.

Ao fim e ao cabo, no que se refere à imunização da espécie humana, a pandemia demonstra não apenas a escancarada desigualdade social do modelo econômico globalizado, mas também o comportamento antiético das grandes nações capitalistas no que se refere ao direito humanitário de acesso à saúde, reduzindo as nações subservientes à condição de meros laboratórios dotados de farta oferta de cobaias humanas. É “compreensível”, pois, o movimento estadunidense de retirada da Organização Mundial de Saúde, dados os compromissos éticos a serem observados pelos Estados membros.