À primeira parte deste exercício de interpretação sobre tratamento jurídico diferenciado para microempresas e empresas de pequeno porte no processo de revisão das normas regulamentadoras de saúde e segurança no trabalho aplica-se a seguinte advertência:

Este é um texto de ficção, qualquer semelhança com nomes, fatos ou situações vividas em uma sociedade – riscos, acidentes e adoecimentos relacionados ao trabalho é mera coincidência”.

Maria é operadora de caixa de uma empresa do setor do comércio varejista de mercadorias em geral, com predominância de produtos alimentícios – supermercado (CNAE 47.11-3), que auferiu no ano-calendário 2019 receita bruta equivalente a R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais).

Tudo de acordo com a previsão constante do artigo 3º, inciso II, do Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (Lei Complementar nº 123/2006).

Até o dia 30 de julho de 2019, data em que foi publicada a Portaria nº 915, da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, a empresa onde Maria trabalha estava obrigada a elaborar um programa de prevenção de riscos ambientais idôneo para preservação da integridade física através da antecipação, reconhecimento, avaliação e consequente controle da ocorrência de riscos ambientais existentes ou que venham a existir no ambiente de trabalho.

A empresa com a qual Maria mantém contrato de trabalho (suspenso), antes da publicação da Portaria 915/2019, também tinha a obrigação de elaborar um programa controle médico da saúde ocupacional dela e de todos os seus colegas de trabalho.

Paulo, empresário e patrão da Maria, em 31 de julho daquele mesmo ano, um dia após a publicação da portaria, portanto, recebeu pelo whatsapp uma série de mensagens de seu contator.

Intercalando frases de euforia e orientação técnica, o contador de Paulo festejava a simplificação, a desburocratização e a harmonização da legislação infralegal combinada com a perspectiva de redução dos custos do supermercado do empresário Paulo.

O contador orientava seu cliente a acessar a página do Ministério da Economia para ratificar, na fonte, suas informações. Ao abrir o link enviado pelo contador, Paulo leu a seguinte informação:

A nova NR 1 desobriga as ME e EPP de grau de risco 1 e 2 (atividades de risco muito baixo e baixo) de elaborarem PPRA e PCMSO. Hoje em dia, todas as empresas devem aplicá-los anualmente.

Para avaliar o impacto desta mudança, foram identificadas as ME e EPP nas atividades que apresentam esses graus de risco e, em seguida, foram atribuídos os valores correspondentes aos custos para a elaboração dos programas citados de acordo com o número de vínculos ativos na empresa.

Para esta análise foram excluídas todas as entidades de qualquer esfera de governo (focando apenas na iniciativa privada).

(…)

As estimativas de redução no custo anual para a indústria e comércio e serviços estão, respectivamente, nas tabelas 1 e 2. Há 17.748 empresas industriais distribuídas nas três atividades industriais que apresentam graus de risco 1 e 2, com um preço médio do pacote de programas igual a R$ 1.392,14.

No setor comércio e serviços, por outro lado, há 1.314.899 empresas ativas e o preço médio do pacote de programas é de R$ 1.166,34.

Assim, o custo total para a indústria como um todo é de R$ 25 milhões e no setor comércio e serviços é R$ 1,5 bilhão.

Seguindo as orientações do seu contador, Paulo, próprio punho, registrou em uma folha de papel sulfite declaração afirmando que em seu estabelecimento não havia quaisquer riscos químicos, físicos, biológicos e ergonômicos relacionados ao trabalho.

E, dada a inexistência de sistema informatizado no âmbito do ministério para receber a declaração na forma informatizada, Paulo, logo após rescindir os contratos com as empresas de assessoria técnica, responsáveis pela elaboração dos programas de prevenção de riscos ambientais e de promoção da saúde dos seus trabalhadores e trabalhadoras, colocou a folha de sulfite em uma das gavetas da mesa do escritório donde administrava sua empresa.

No ano seguinte, pouco antes do início da pandemia, a empresa de Paulo foi fiscalizada pela inspeção do Trabalho.

Paulo foi notificado para apresentar, entre outros documentos, o PPRA e PCMSO do supermercado.

Não havia mais PPRA, nem PCMSO. Paulo abriu a gaveta, procurou no meio de diversas notificações da Receita Federal do Brasil a declaração firmada em meados de 2019, mas nada localizou.

Paulo ligou imediatamente para seu contador, que o orientou a fazer novamente a anotação, próprio punho, ditando os termos a serem escritos pelo empreendedor.

Paulo entregou a declaração ao auditor do Trabalho. A ação fiscal trabalhista foi concluída com relatório indicando situação regular em saúde e segurança do trabalho no que se refere às obrigações de elaborar e implementar o PPRA e o PCMSO, formalmente dispensadas pela Portaria nº 915/2019.

Intrigado com sumiço da declaração registrada na esteira da publicação da Portaria 915/2019, Paulo retirou todos os papeis da gaveta.

Em uma pasta identificada como autuações da Receita Federal do Brasil, Paulo encontrou a declaração de inexistência de riscos ambientais junto com outros documentos, todos unidos por um par de clipes nas cores verde e amarela, cada.

A declaração estava junto com a notificação da Receita Federal do Brasil que excluía a empresa de Paulo do enquadramento como empresa de pequeno porte em razão de que o empreendedor era, também, administrador ou equiparado de outra pessoa jurídica com fins lucrativos, cuja receita bruta global ultrapassava o limite de R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais), conforme vedações constantes do § 4º, artigo 3º, da Lei Complementar 123/2006.

Por outras palavras, a então empresa de pequeno porte explorada por Paulo, não fazia mais jus ao tratamento jurídico (tributário) diferenciado previsto em lei em razão de que Paulo era sócio de outra empresa.

E a Maria? Bem, a Maria, no ano de 2021, pouco antes da redação desta obra de ficção da qual é personagem engolfada pela desregulamentação da saúde e segurança do trabalho foi afastada por auxílio-doença decorrente de incapacidade laboral por tendinite com inflamação do tendão de seu ombro direito em razão de inadequação do mobiliário e dos acessórios do seu posto de trabalho. Fim.

Posta a singela e pueril ficção, passa-se à análise técnica sobre a viabilidade do roteiro, segunda parte dessa contrução.

De acordo com o item 1.7, do Anexo 1, da Portaria nº 915/2019, onde está positivado o texto atual da norma regulamentadora NR 1, ao arcabouço normativo de saúde e segurança do trabalho foi incorporado o conceito predominantemente tributário nominado como “tratamento jurídico diferenciado”, previsto pelo artigo 179, da CRFB/88.

De acordo com o novel dispositivo da NR 1, que promove forte penetração da pauta de liberação econômica do Ministério da Economia nas normas regulamentadoras de saúde e segurança do trabalho, têm-se as seguintes disposições:

 1.7.1 O MEI, a ME e a EPP, graus de risco 1 e 2, que declararem as informações digitais na forma do subitem 1.5.1 e não possuírem riscos químicos, físicos e biológicos, ficarão dispensados de elaboração do Programa de Prevenção de Riscos Ambientais – PPRA.

1.7.2 O MEI, a ME e a EPP, graus de risco 1 e 2, que declararem as informações digitais na forma do subitem 1.5.1 e não possuírem riscos químicos, físicos, biológicos e ergonômicos, ficarão dispensados de elaboração do Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional – PCMSO.

À toda evidência, trata-se de uma hipótese de desregulamentação da saúde e segurança do trabalho em contraste com o princípio do risco regressivo mínimo (CRFB/88, art. 7º, inciso XXII).

Desregulamentação essa que pode ser operacionalizada mediante autodeclaração empresarial, conforme disposto no artigo 6º, da precitada portaria.

Art. 6º Estabelecer que, enquanto não houver sistema informatizado para o recebimento da declaração de informações digitais prevista nos subitens 1.7.1 e 1.7.2 do Anexo I desta Portaria, o empregador deverá manter declaração de inexistência de riscos no estabelecimento para fazer jus ao tratamento diferenciado.

O enquadramento do setor do comércio varejista de mercadorias em geral, com predominância de produtos alimentícios – supermercado (CNAE 47.11-3), entre outras tantas atividades econômicas passíveis de enquadramento no novel tratamento jurídico diferenciado labor-ambiental, está previsto no Quadro 1, da NR 4 (SESMT).

Aponta-se no roteiro o CNAE 47.11-3 em razão de que este segmento da atividade econômica é responsável por 4% do total de acidentes de trabalho notificados no Brasil entre os anos de 2012 e 2020, ou seja, 180.811 (cento e oitenta mil, oitocentas e onze) notificações de acidentes no período.

As lesões mais frequentes nessa atividade econômica correspondem a cortes, lacerações, ferida contusa, punctura (31%), contusões e esmagamentos (18%), fraturas (14%), distensão e torção (9%).

É prudente destacar que as empresas de pequeno porte do segmento de supermercados, isoladamente, não são responsáveis pela totalidade dessas estatísticas acidentárias. Contudo, não se pode rejeitar que empresas de pequeno porte contribuem com o quadro acidentário em exame nesse setor empresarial.

Nessa esteira, o tratamento jurídico diferenciado labor-ambiental criado no âmbito do paradoxo de uma “regulamentação desregulamentadora” levada a efeito pelo processo de revisão das normas regulamentadoras pelo Ministério da Economia é muito mais complacente do que o tratamento jurídico diferenciado de natureza tributária.

Isto porque a legislação tributária faz várias restrições ao acesso de empresas ao tratamento diferenciado tributário (vide os onze incisos, do § 4º, do artigo 3º, da Lei Complementar nº 123/2006), como no exemplo ficcional do empresário Paulo que teve uma de suas empresas excluídas do tratamento simplificado em razão de que Paulo era também sócio de outra organização.

Não se está, aqui, propondo a ideia de aperfeiçoamento do teratológico tratamento jurídico diferenciado labor-ambiental mediante importação de mais elementos de viés tributário para harmonizar a norma regulamentadora NR 1 com a Lei Complementar nº 123/2006. Longe disso.

Entre outros tantos vícios dessa construção infralegal, a incompatibilidade do artifício de aplicar regras de natureza econômica e tributária (faturamento bruto anual) como critério de liberação das obrigações de prover saúde e segurança no âmbito das relações de trabalho, não se perfila ao princípio da indisponibilidade da saúde do trabalhador e da trabalhadora.

É notável, nessa linha, que a própria Lei Complementar 123/2006 veda ao normatizador tripartite (CTPP) dispor sobre a matéria, conforme disposto no Capítulo VI (Da Simplificação das Relações de Trabalho), Seção I (Da Segurança e Da Medicina do Trabalho), no único artigo que o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, ao balizar a atividade do Estado como órgão regulador.

Art. 50.  As microempresas e as empresas de pequeno porte serão estimuladas pelo poder público e pelos Serviços Sociais Autônomos a formar consórcios para acesso a serviços especializados em segurança e medicina do trabalho.

Hialino está que, em matéria de segurança e medicina do trabalho, ao normatizador tripartite (CTPP) somente haveria espaço para estimular as microempresas e empresas de pequeno porte para o acesso a serviços especializados em segurança e medicina do trabalho.

À toda evidência, o roteiro jurídico, social e econômico depurado até aqui permite antever que a ficção proposta na primeira parte deste texto tem projeções muito factíveis no mundo do trabalho, se é que não se está diante de uma realidade de fato já enfrentada por empresários, contadores, trabalhadores, sindicatos e auditores-fiscais (observe o leitor, por sua conta, a flexão de gênero, por coerência redacional).

Se se acrescentar à primeira parte do texto, no âmbito do escorço ficcional, um outro personagem, e. g., João, trabalhador de uma empresa do mesmo CNAE 47.11-3, com faturamento bruto anual superior a R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais), teremos uma discriminação labor-ambiental entre trabalhadores e trabalhadoras da mesma categoria econômica: empregados de microempresa e empresas de pequeno porte desprovidos de programas de prevenção de acidentes e adoecimentos; empregados de médias e grandes empresas respaldados pelos programas.

Diante do exposto, desde a violação do princípio da isonomia é imperativo concluir que o permissivo infralegal do roteiro em destaque, qual seja, o tratamento jurídico diferenciado labor-ambiental não encontra respaldo na Constituição da República, nas Convenções da Organização Internacional do Trabalho, no Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, na Consolidação das Leis do Trabalho, na Lei Orgânica do SUS e na Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador.