A história da pandemia da Covid-19 tem sua dinâmica marcada por dois fatores determinantes, quais sejam: a evolução do conhecimento científico sobre a transmissão da infecção; e a capacidade tecnológica e econômica dos países em oferecer respostas e soluções para a redução dos riscos e danos associados à maior crise sanitária do Século XXI.

Dados do Ministério da Saúde, atualizados em 15 de outubro de 2021, apontam que, no Brasil, foram distribuídas 310.498.347 doses de imunizantes contra a Covid-19, sendo que 154,85 milhões de pessoas receberam pelo menos uma dose da vacina e 100,63 milhões de pessoas estão com o esquema vacinal completo.

Na mesma página governamental, destaca-se que, no Brasil, mais de 600 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 estão encomendadas até o fim de 2021.

De par com isso, imperativo gizar que as vacinas adotadas pelo SUS passaram por todas as etapas necessárias para a criação de um novo imunizante e cumprem a critérios científicos rigorosos adotados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

A toda evidência, na presente fase do enfrentamento da pandemia em território nacional não há mais que se cogitar a escassez de imunizantes como fator determinante de medidas de priorização de grupos populacionais, especialmente no que se refere aos trabalhadores e trabalhadoras de atividades econômicas qualificadas pela legislação como atividades essenciais.

Há, portanto, vacinas para atendimento universal da população brasileira.

Corolário disso, o Brasil se aproxima de um índice de vacinação populacional a partir do qual a eficácia da vacina deixa ser aferida exclusivamente no que se refere à mitigação do agravamento da infecção e passa a ser aferida no que se refere ao controle e redução da taxa de transmissão da infecção a partir da ideia de imunização coletiva ou “imunidade de rebanho”.

Esse resultado é extremamente salutar para a economia, para as empresas, para o sistema de saúde e para trabalhadores e trabalhadoras.

Nada obstante essa alvissareira realidade próxima e desejável, as autoridades sanitárias se deparam com fenômenos conhecidos como abandono vacinal ou recusa injustificada em receber o imunizante.

Muitas vezes, a resistência à vacinação tem origem na difusão de fake news, na falta de campanhas informativas pelo poder público e/ou em segmentos da sociedade que partidarizam interesse público primário e apartidário.

Frente aos desafios para atingimento da imunidade coletiva da população brasileira, muitos entes subnacionais, a partir do reconhecimento pelo STF do federalismo cooperativo na gestão e enfrentamento da emergência sanitária associada à Covid-19, passaram a adotar uma prática que ficou conhecida como “passaporte vacinal”.

Essa medida, em síntese, corresponde à permissão de acesso a determinados locais e serviços a partir da comprovação de completude do esquema vacinal fixado pelo Programa Nacional de Imunização/Programa Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra Covid-19.

A questão que exsurge no que se refere ao meio ambiente de trabalho, posta em forma de questionamento pode ser assim articulada: é possível reconhecer, no âmbito da relação de trabalho em sentido amplo, a implementação de um “passaporte vacinal ocupacional”?

Respeitadas as opiniões que entendem que as liberdades individuais se sobrepõem ao interesse coletivo, o Direito Ambiental do Trabalho aponta que a medida é plenamente compatível com os princípios constitucionais da indisponibilidade da saúde do trabalhador e da trabalhadora e do risco ocupacional regressivo.

E dada a excepcionalidade da medida sanitária, não há que se falar em vulneração das liberdades individuais, que se mantêm incólumes no catálogo de direitos fundamentais.

Antes de adentrar aos fundamentos jurídicos sobre a compatibilidade da medida sanitária em comento, faz-se imperativo fixar que nesta análise não serão examinadas, nesse texto, hipóteses excepcionais de recusas clínicas justificadas (pessoas imunodeprimidas, gestantes) ou sanção contratual por ato de indisciplina ou insubordinação de obreiros.

A análise se restringe à compatibilidade jurídica entre a adoção, por regulamento ou ordem de serviço de saúde e segurança do trabalho, da comprovação de vacinação, pelos trabalhadores e trabalhadoras, como condição para ingresso no meio ambiente de trabalho, cujos riscos ocupacionais são gerenciados pelo empregador.

O meio ambiente de trabalho, assim compreendido como o local e conjunto de processos onde o empregador exerce por força contratual, o poder diretivo da prestação de serviço alberga a responsabilidade patronal pela prevenção de riscos de adoecimentos relacionados ao trabalho.

Nesse contexto, a comutatividade entre os artigos 157 e 158 da CLT, inseridos no Capítulo V do diploma em exame, estabelecem que as empresas têm o dever de cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho e que os empregados têm a obrigação de cumprir essas mesmas disposições, nos seguintes termos.

Art. 157 – Cabe às empresas:

I – cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho;

(…)

Art. 158 – Cabe aos empregados:

I – observar as normas de segurança e medicina do trabalho, inclusive as instruções de que trata o item II do artigo anterior;

No mesmo sentido, a Lei de Benefícios da Previdência Social (Lei nº 8.213/91), em seu artigo 19, § 1º, estabelece que a empresa é responsável pela adoção das medidas coletivas e individuais de proteção da saúde do trabalhador e da trabalhadora.

Art. 19 – (…)

§ 1º A empresa é responsável pela adoção e uso das medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do trabalhador.

A Lei 8.080/90, em seu artigo 2º, afirma que a saúde é direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício, e assevera que o Estado atuará em cooperação com a empresa nesse mister. Transcreve-se a normativa em discurso, por imperativo.

Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

§ 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade.

No plano infra legal, tanto a Política Nacional de Saúde e Segurança do Trabalho (Decreto 7.602/2011), quanto à Norma Regulamentadora NR 1, que trata sobre disposições gerais de saúde e segurança do trabalho a serem observadas por todas as organizações empresariais, também fixam a mesma diretriz, conforme dispositivos a seguir transcritos.

I – A Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho – PNSST tem por objetivos a promoção da saúde e a melhoria da qualidade de vida do trabalhador e a prevenção de acidentes e de danos à saúde advindos, relacionados ao trabalho ou que ocorram no curso dele, por meio da eliminação ou redução dos riscos nos ambientes de trabalho;

1.4.1 Cabe ao empregador:

a) cumprir e fazer cumprir as disposições legais e regulamentares sobre segurança e saúde no trabalho;

(…)

c) elaborar ordens de serviço sobre segurança e saúde no trabalho, dando ciência aos trabalhadores;

A vacinação compulsória dos trabalhadores e trabalhadoras, aliás, não é novidade no campo da saúde ocupacional sendo medida obrigatória dos Programas de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCSMO) dos trabalhadores da saúde (NR 32, item 32.2.3.1, alínea “e”), sem que se tenha notícia de violação das liberdades individuais nesse setor.

Não se deve olvidar o fato de que, no caso de entes subnacionais que implementaram em sua legislação sanitária medidas identificadas como “passaporte vacinal”, a exigibilidade, pelo empregador, de comprovação da vacinação pelos seus empregados decorre da própria legislação sanitária local ou regional, por força da norma de interface prevista pelo artigo 154 da CLT, combinado com item 1.2.2 da NR 1, in verbis.

Art.  154 – A observância, em todos os locais de trabalho, do disposto neste Capitulo, não desobriga as empresas do cumprimento de outras disposições que, com relação à matéria, sejam incluídas em códigos de obras ou regulamentos sanitários dos Estados ou Municípios em que se situem os respectivos estabelecimentos, bem como daquelas oriundas de convenções coletivas de trabalho.

1.2.2 A observância das NR não desobriga as organizações do cumprimento de outras disposições que, com relação à matéria, sejam incluídas em códigos de obras ou regulamentos sanitários dos Estados ou Municípios, bem como daquelas oriundas de convenções e acordos coletivos de trabalho.

Tomando-se como exemplo da plena exigibilidade do “passaporte vacinal” decorrente da relação de trabalho em sentido amplo, colhe-se o Decreto Municipal 49.335, de 26/08/2021, da cidade do Rio de Janeiro.

Art. 1º Ficam condicionados, a partir de 1º de setembro de 2021, à prévia comprovação de vacinação contra a COVID-19, como medida de interesse sanitário de caráter excepcional, o acesso e a permanência no interior de estabelecimentos e locais de uso coletivo.

§1º A vacinação a ser comprovada corresponderá a 1ª dose, a 2ª dose ou a dose única, em razão do cronograma instituído pela Secretaria Municipal de Saúde – SMS, em relação à idade da pessoa.

§2º As condições previstas no caput se aplicam aos seguintes estabelecimentos e locais de uso coletivo:

I – academias de ginástica, piscinas, centros de treinamento e de condicionamento físico e clubes sociais;

II – vilas olímpicas, estádios e ginásios esportivos; III – cinemas, teatros, salas de concerto, salões de jogos, circos, recreação infantil e pistas de patinação;

IV – atividades de entretenimento, exceto quando expressamente vedadas;

V – locais de visitação turísticas, museus, galerias e exposições de arte, aquário, parques de diversões, parques temáticos, parques aquáticos, apresentações e drive-in;

VI – conferências, convenções e feiras comerciais.

À obviedade, todos os empregadores dos setores e atividades arrolados nos incisos I a VI, da legislação sanitária municipal da cidade do Rio de Janeiro já estão obrigados a exigir de seus trabalhadores e trabalhadoras a comprovação de vacinação na forma do precitado decreto combinado com os dispositivos do artigo 154 da CLT e da NR 1.

Diante de todo o exposto, é imperativo concluir que as empresas em geral, forte no Direito Ambiental do Trabalho e nos princípios da indisponibilidade da saúde do trabalhador e da trabalhadora e do risco ocupacional mínimo regressivo podem e devem exigir a comprovação de vacinação de seus trabalhadores e trabalhadoras no exercício do poder de direção da atividade econômica, sendo indene de dúvidas que, nos casos onde já há legislação local e regional fixando atividades e setores econômicos sujeitos a tal medida sanitária essa providência é passível de exigibilidade pelas autoridades sanitárias e pela inspeção do Trabalho como efetivas obrigações de saúde e segurança labor-ambiental.